Paz e Mel

Paz e Mel

Papa fala de João de Salisbury contra o relativismo

 

Queridos irmãos em Cristo:

 

No prosseguimento da meditação das catequeses do Santo Padre, repassamos agora aquela ministrada em 16 de dezembro último, em que recorda João de Salisbury. Ao retomar sua história, destacou-se o fato de sua oposição ao Rei Henrique II, da Inglaterra, que se queria impor em assuntos internos da Igreja, contrariando o papado. Destacou, ainda, o Vigário de Cristo, suas duas principais obras. A saber: Metaloghicón (Em defesa da lógica) e Polycráticus (O homem de Governo). No primeiro, dá conta da importância do conteúdo, da verdade, da sabedoria das palavras, ao invés meramente da forma, da eloqüência. No segundo, ao se debruçar sobre o problema do conhecimento humano: "O conhecimento humano – esta é a sua conclusão – é imperfeito, porque está sujeito à finitude, ao limite do homem. Porém, ela cresce e aperfeiçoa-se graças à experiência e à elaboração de raciocínios corretos e coerentes, capazes de estabelecer relações entre os conceitos e a realidade, graças ao debate, ao confronto e ao saber que se enriquece de geração em geração. Somente em Deus existe uma ciência perfeita, que é comunicada ao homem, pelo menos parcialmente, por meio da Revelação acolhida na fé, pelo que a ciência da fé, a teologia, alarga as potencialidades da razão e faz progredir com humildade no conhecimento dos mistérios de Deus".

 

O Vigário de Cristo continua, dando conta que o autor percebe que: "existe também uma verdade objetiva e imutável, cuja origem está em Deus, acessível à razão humana e que diz respeito ao agir prático e social. Trata-se de um direito natural, no qual as leis humanas e as autoridades políticas e religiosas devem inspirar-se, a fim de poder promover o bem comum. Esta lei natural é caracterizada por uma propriedade à qual João chama 'equidade', ou seja a atribuição dos seus direitos a cada pessoa. Dela derivam preceitos que são legítimos em todos os povos, e que em qualquer caso não podem ser ab-rogados. Esta é a lei central do Polycráticus, o tratado de filosofia e de teologia política, em que João de Salisbury, reflete sobre as condições que tornam a ação dos governantes justa e permitida".

 

E traz a lição para o nosso plano, recordando ainda de sua última homilia como Cardeal Ratzinger, em que cunhou em definitivo a expressão "ditadura do relativismo": "no nosso tempo, sobretudo em alguns países, assistimos a uma separação preocupante entre a razão, que tem a tarefa de descobrir os valores éticos ligados à dignidade da pessoa humana, e a liberdade, que tem a responsabilidade de os acolher e promover. Talvez João de Salisbury nos recorde hoje que são conformes com a realidade somente as leis que tutelam a sacralidade da vida humana e rejeitam a liceidade do aborto, da eutanásia e das experiências genéticas desenvoltas, aquelas leis que respeitam a dignidade do matrimónio entre um homem e uma mulher, que se inspiram numa laicidade correcta do Estado – laicidade que contudo comporta sempre a salvaguarda da liberdade religiosa – e que perseguem a subsidiaridade e a solidariedade nos planos nacional e internacional. Caso contrário, acabaria por se instaurar aquela que João de Salisbury define a 'tirania do príncipe' ou, nós diríamos, 'a ditadura do relativismo': um relativismo que, como eu recordava há alguns anos, 'nada reconhece como definitivo e deixa como última medida só o próprio eu e os seus desejos' (Missa pro eligendo Romano Pontifice, Homilia, ed. port. de "L'Osservatore Romano" de 23 de Abril de 2005)".

 

É o Santo Padre falando dos grandes riscos do nosso tempo, relativismo, laicismo, indiferentismo, conforme temos reiterado neste blog.

 

Segue a íntegra da catequese.

 

Grande abraço a todos.

 

Manoel Guimarães,

Comunidade Paz & Mel.

 

"Caros irmãos e irmãs

Hoje vamos conhecer a figura de João de Salisbury, que pertencia a uma das escolas filosóficas e teológicas mais importantes da Idade Média, a da Catedral de Chartres, na França. Também ele, como os teólogos de que falei nas semanas passadas, nos ajuda a compreender como a fé, em harmonia com as justas aspirações da razão, impele o pensamento para a verdade revelada, na qual se encontra o verdadeiro bem do homem.

João nasceu em Salisbury, na Inglaterra, entre 1100 e 1120. Lendo as suas obras e sobretudo o seu rico epistolário, tomamos conhecimento dos fatos mais importantes da sua vida. Durante cerca de doze anos, de 1136 a 1148, ele dedicou-se aos estudos, freqüentando as escolas mais qualificadas da época, nas quais ouviu as lições de mestres famosos. Foi a Paris e depois a Chartres, o ambiente que marcou em maior medida a sua formação e do qual assimilou a grande abertura cultural, o interesse pelos problemas especulativos e o apreço pela literatura. Como muitas vezes acontecia nessa época, os estudantes mais brilhantes eram convidados por prelados e soberanos, para ser seus estreitos colaboradores. Isto aconteceu também com João de Salisbury, que por um seu grande amigo, Bernardo de Claraval, foi apresentado a Teobaldo, Arcebispo de Canterbury – sede primacial da Inglaterra – que de bom grado o acolheu no seu clero. Por onze anos, de 1150 a 1161, João foi secretário e capelão do idoso Arcebispo. Com zelo incansável, enquanto continuava a dedicar-se ao estudo, ele desempenhou uma atividade diplomática intensa, visitando dez vezes a Itália, com a finalidade de manter as relações do Reino e da Igreja da Inglaterra com o Romano Pontífice. Além disso, naqueles anos o Papa era Adriano IV, um inglês que teve uma forte amizade com João de Salisbury. Nos anos seguintes à morte de Adriano IV, ocorrida em 1159, na Inglaterra criou-se uma situação de grave tensão entre a Igreja e o Reino. Com efeito, o rei Henrique II tencionava afirmar a sua autoridade sobre a vida interna da Igreja, limitando a sua liberdade. Esta tomada de posição suscitou as reações de João de Salisbury, e principalmente a resistência corajosa do sucessor de Teobaldo na cátedra episcopal de Canterbury, S. Tomás Becket, que por este motivo foi para o exílio, na França. João de Salisbury acompanhou-o e permaneceu ao seu serviço, trabalhando sempre por uma reconciliação. Em 1170, quando quer João quer Tomás Becket já tinham voltado para a Inglaterra, este último foi atacado e assassinado no interior da sua catedral. Morreu como mártir e como tal foi imediatamente venerado pelo povo. João continuou a servir fielmente também o sucessor de Tomás, até ser eleito Bispo de Chartres, onde permaneceu de 1176 a 1180, ano da sua morte.

Das obras de João de Salisbury gostaria de indicar duas, que são consideradas as suas obras-primas, designadas elegantemente com os títulos gregos de Metaloghicón (Em defesa da lógica) e Polycráticus (O homem de Governo). Na primeira obra ele – não sem a requintada ironia que caracterizava muitos homens cultos – rejeitou a posição daqueles que tinham uma concepção redutiva da cultura, considerada como eloquência vazia, palavras inúteis. João, por sua vez, elogia a cultura, a filosofia autêntica, ou seja o encontro entre pensamento forte e comunicação, palavra eficaz. Ele escreve: 'De fato, como não é só temerária, mas também eloquência cega não iluminada pela razão, assim a sabedoria que não beneficia do uso da palavra é não só frágil, mas de certo modo incompleta: com efeito, embora por vezes uma sabedoria sem palavra possa ser benéfica no confronto da própria consciência, raramente e pouco beneficia a sociedade' (Metaloghicón 1, I, PL 199, 327). Um ensinamento muito atual. Hoje, aquela que João definia 'eloquência', ou seja a possibilidade de comunicar com instrumentos cada vez mais elaborados e difundidos, multiplicou-se enormemente. Todavia, é ainda mais urgente a necessidade de transmitir mensagens dotadas de 'sabedoria', ou seja inspiradas na verdade, na bondade e na beleza. Trata-se de uma grande responsabilidade, que interpela em particular as pessoas que trabalham no âmbito multiforme e complexo da cultura, da comunicação, dos mass media. E este é um âmbito em que se pode anunciar o Evangelho com vigor missionário.

No Metaloghicón, João enfrenta os problemas da lógica, na sua época objeto de grande interesse, e formula-se uma interrogação fundamental: o que pode conhecer a razão humana? Até que ponto ela pode corresponder àquela aspiração que existe em cada homem, ou seja a busca da verdade? João de Salisbury adota uma posição moderada, baseada no ensinamento de alguns tratados de Aristóteles e de Cícero. Na sua opinião, em geral a razão humana alcança conhecimentos que não são inquestionáveis, mas prováveis e opináveis. O conhecimento humano – esta é a sua conclusão – é imperfeito, porque está sujeito à finitude, ao limite do homem. Porém, ela cresce e aperfeiçoa-se graças à experiência e à elaboração de raciocínios corretos e coerentes, capazes de estabelecer relações entre os conceitos e a realidade, graças ao debate, ao confronto e ao saber que se enriquece de geração em geração. Somente em Deus existe uma ciência perfeita, que é comunicada ao homem, pelo menos parcialmente, por meio da Revelação acolhida na fé, pelo que a ciência da fé, a teologia, alarga as potencialidades da razão e faz progredir com humildade no conhecimento dos mistérios de Deus.

O crente e o teólogo, que aprofundam o tesouro da fé, abrem-se também a um saber prático, que guia as ações quotidianas, ou seja, para as leis morais e o exercício das virtudes. João de Salisbury escreve: 'A clemência de Deus concedeu-nos a sua lei, que estabelece as coisas que nos é útil conhecer, e que indica quanto é lícito saber de Deus e quanto é justo indagar... Com efeito, nesta lei explicita-se e torna-se evidente a vontade de Deus, a fim de que cada um de nós saiba o que para ele é necessário fazer' (Metaloghicón 4, 41, PL 199, 944-945). Segundo João de Salisbury, existe também uma verdade objetiva e imutável, cuja origem está em Deus, acessível à razão humana e que diz respeito ao agir prático e social. Trata-se de um direito natural, no qual as leis humanas e as autoridades políticas e religiosas devem inspirar-se, a fim de poder promover o bem comum. Esta lei natural é caracterizada por uma propriedade à qual João chama 'equidade', ou seja a atribuição dos seus direitos a cada pessoa. Dela derivam preceitos que são legítimos em todos os povos, e que em qualquer caso não podem ser ab-rogados. Esta é a lei central do Polycráticus, o tratado de filosofia e de teologia política, em que João de Salisbury, reflete sobre as condições que tornam a ação dos governantes justa e permitida.

Enquanto outros argumentos enfrentados nesta obra estão ligados às circunstâncias históricas em que ela foi composta, o tema da relação entre lei natural e ordenamento jurídico-positivo, mediado pela equidade, é ainda hoje de grande importância. Com efeito, no nosso tempo, sobretudo em alguns países, assistimos a uma separação preocupante entre a razão, que tem a tarefa de descobrir os valores éticos ligados à dignidade da pessoa humana, e a liberdade, que tem a responsabilidade de os acolher e promover. Talvez João de Salisbury nos recorde hoje que são conformes com a realidade somente as leis que tutelam a sacralidade da vida humana e rejeitam a liceidade do aborto, da eutanásia e das experiências genéticas desenvoltas, aquelas leis que respeitam a dignidade do matrimónio entre um homem e uma mulher, que se inspiram numa laicidade correcta do Estado – laicidade que contudo comporta sempre a salvaguarda da liberdade religiosa – e que perseguem a subsidiaridade e a solidariedade nos planos nacional e internacional. Caso contrário, acabaria por se instaurar aquela que João de Salisbury define a 'tirania do príncipe' ou, nós diríamos, 'a ditadura do relativismo': um relativismo que, como eu recordava há alguns anos, 'nada reconhece como definitivo e deixa como última medida só o próprio eu e os seus desejos' (Missa pro eligendo Romano Pontifice, Homilia, ed. port. de "L'Osservatore Romano" de 23 de Abril de 2005).

Na minha Encíclica mais recente, Caritas in veritate, dirigindo-me aos homens de boa vontade, que se comprometem a fim de que a ação social e política nunca seja separada da verdade objetiva sobre o homem e sobre a sua dignidade, escrevi: 'A verdade e o amor que a mesma desvenda não se podem produzir, mas apenas acolher. A sua fonte última não é – nem pode ser – o homem, mas Deus, ou seja, Aquele que é Verdade e Amor. Este princípio é muito importante para a sociedade e para o desenvolvimento, enquanto nem uma nem outro podem ser apenas produtos humanos; a própria vocação ao desenvolvimento das pessoas e dos povos não se funda sobre a simples deliberação humana, mas está inscrita num plano que nos precede e constitui para todos nós um dever que há de ser livremente assumido' (n. 52). Temos que procurar e acolher este plano que nos precede, esta verdade do ser, para que nasça a justiça, mas só podemos encontrá-lo e acolhê-lo com um coração, uma vontade, uma razão purificados na luz de Deus".

 

Fonte:

 

http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2009/documents/hf_ben-xvi_aud_20091216_po.html

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.